O Ultimato: Queer Love | Um reality show necessário

Na última semana de maio, a Netflix estreou O Ultimato: Queer Love, um reality show que coloca casais sáficos para viver uma experiência reflexiva sobre amor verdadeiro.

Nela, uma das participantes de cada casal quer casar, enquanto a outra não tem interesse ou ainda não está preparada para isso, e no final vai precisar decidir se está pronta para dar esse próximo passo, ou se vai dar um adeus definitivo à sua amada.

Sendo assim, o casal se separa e seleciona uma nova parceira para ter um “casamento experimental” por três semanas. É nesse momento em que as participantes têm a oportunidade de conhecer outras pessoas com interesses similares, que poderiam ser, inclusive, uma melhor escolha para um compromisso para o resto da vida.

Ao término desse período, o casal original também passa a morar junto por outras três semanas, e é aí que os problemas do relacionamento, elucidados pela experiência do casamento experimental, são colocadas em evidência. No final, culmina-se em uma decisão final: ficar noiva da parceira original, formar um novo casal ou entrar em um relacionamento sério consigo mesma e focar em resolver problemas internos.

Porém, o reality, que de longe parece um daqueles entretenimentos banais do qual não se precisa fazer nenhum esforço para digerir, pauta uma série de pontos de tensão que trazem à tona discussões importantes – tanto no que diz respeito a como a relação de casamento é vista por pessoas queer, quanto em assuntos sobre relacionamentos tóxicos e abusivos fora das lentes da heteronormatividade.  

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Neste artigo, que está recheado de spoilers, é possível esmiuçar melhor alguns detalhes do por quê esse reality show é tão importante para a comunidade LGBTQIA+ – e vai muito além da matéria da representatividade.

O Ultimato: um dos primeiros realities de relacionamentos LGBTQIA+

Participantes de "O Ultimato" (2023): Queer Love. Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Mildred, Xander, Yoly, Lexi, Sam, Tiff, Vanessa, Mal, Rae, Aussie.
(Imagem: Netflix / Reprodução)

[Da esquerda para a direita, de cima para baixo, nome das participantes e suas idades na época das filmagens: Mildred Woody (33), Xander Boger (30), Yoly Rojas (34), Lexi Goldberg (24), Sam Mark (31), Tiffany Der (32), Vanessa Papa (30), Mal Wright (36), Raelyn Cheung-Sutton (27), Aussie Chau (42).]

O Ultimato: Queer Love (2023) é um spin-off do programa O Ultimato: Ou Casa ou Vaza (2022), que tinha com participantes casais heterossexuais. Nesta nova temporada, o foco está nos casais de lésbicas e não-binários, proporcionando uma ótica muito mais diversa e representativa, ao abrir diálogos, inclusive, sobre papéis normativos de gênero (mesmo quando os casais são do mesmo sexo!). 

Há de se aplaudir a Netflix por lançar um dos primeiros reality shows a tratar de relacionamentos LGBTQIA+ – antes tarde do que mais tarde! No entanto, tão logo a série entrou na lista das mais assistidas, os espectadores já começaram a comentar sobre todas as situações de gatilhos e red flags das corajosas participantes. Assim, a internet, comovida com as histórias reais de mulheres que se relacionam afetivamente, passou a debater como a toxicidade se reflete em relacionamentos independentemente do gênero e da sexualidade.

CONFIRA O TRAILER:

Apesar de tudo, O Ultimato: Queer Love é uma experiência intrigante para quem assiste, seja alguém que pertença ao espectro LGBTQIA+ ou não. O programa proporciona discussões importantes no que tange às relações humanas e, principalmente, às relações homoafetivas, trazendo reflexões ao despertar gatilhos e reviver traumas (tanto dos participantes, quanto do espectador).

Debate: a relação do matrimônio entre pessoas queer

As participantes Lexi e Rae mostrando as alianças logo após firmarem o noivado.
(Imagem: Netflix / Reprodução)

Como já abordado, chega a ser quase ultrajante que estejamos em 2023 e só agora exista um reality show voltado para relacionamentos queer. No entanto, o timing do lançamento é muito pertinente, praticamente na mesma semana em que a Uganda aprovou uma lei que pune atividades homossexuais com prisão perpétua e pena de morte.

A verdade é que as relações “entre pessoas do mesmo sexo” ainda não são bem-vistas por órgãos governamentais em muitos países pelo mundo. Nessa temática, a falta de apoio à comunidade se incide de formas diferentes – desde o não reconhecimento do casamento pela legislação, como é o caso do Cazaquistão e da Rússia, até a criminalização da atividade sexual consensual, que é passível de duras penas, como ocorre na Nigéria e no Quênia.

Os Estados Unidos, no entanto, são um dos países em que se lidera em políticas progressistas com relação à aceitação da comunidade LGBTQIA+ – apesar de, em muitos estados, ainda se haver muitos movimentos e políticas contrários. Esta última edição de O Ultimato foi filmada em 2021 em San Diego, Califórnia, um dos estados mais liberais em relação aos direitos a lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e outros termos do guarda-chuva queer. É claro que ainda existem crimes de ódio, mas eles são, felizmente, abominados pela lei e pela população média. Em 1976, a Califórnia descriminalizou as atividades homossexuais e, em 2013, legalizou o “same-sex marriage“. 

É inegável que a cultura estadunidense como um todo é uma das líderes na “normalização” desses relacionamentos. No entanto, esses direitos só foram cedidos muito recentemente, e ainda há muita luta a ser desenvolvida no que diz respeito à sensibilização alheia com relação ao matrimônio homossexual.

É por isso que “família” ainda é um tópico delicado para muitas pessoas queer, que às vezes passam anos reprimindo sua verdadeira natureza, temendo pela não aceitação familiar. Nesses casos, considerar inserir um(a) parceiro(a) do mesmo gênero na família acaba sendo algo impensável! E isso porque nem estamos falando sobre o culto à religiosidade, que no geral (mas nem sempre) costuma ter uma forte opinião contrária ao matrimônio igualitário.

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De fato, um programa que promove o desenvolvimento amoroso entre indivíduos que vivem essas lutas sociais e internas cotidianamente, por si só, já é importante. Também por dar visibilidade, é claro, mas principalmente para que os espectadores que passam por uma vivência similar se sintam representados e consigam, inclusive, tomar coragem para mudar certos comportamentos e/ou posicionamentos perante às suas famílias, amigos e, sobretudo, parceires.

Para além da ideia do “felizes para sempre” de um ultimato

As participantes de "O Ultimato" sentadas à mesa do jantar no dia da decisão de seus casamentos experimentais, acompanhadas pela apresentadora do programa.
(Imagem: Netflix / Reprodução)

Cada casal de O Ultimato é composto por uma pessoa que quer um compromisso para a vida, e a outra, não. No entanto, esse desinteresse na pauta do casamento definitivamente não é falta de amor – às vezes, são simplesmente outras prioridades, outras visões de mundo, preocupações financeiras, inseguranças pessoais, etc.

A TikToker TBlizzy, que trata de pautas sobre gênero e sexualidade em seus vídeos, criou uma playlist que já conta com mais de dez vídeos de review e opiniões sobre as polêmicas dessa versão sáfica de O Ultimato. É com base nos seus estudos psicossociais que trataremos os temas a seguir.

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Atenção: aqui começam os spoilers.
Se você ainda não assistiu o reality e pretende fazer sua experiência com tal ser surpreendente, sugere-se que volte neste artigo num futuro próximo.

Parceiros narcisistas (Vanessa)

A participante Vanessa segurando o rosto de Xander, da qual formava um casal originalmente, e a olhando intensamente.
(Imagem: Netflix / Reprodução)

Desde o começo, a participante Vanessa Papa, que entra no programa devido ao ultimato de sua namorada, Xander Boger, chama atenção com o seu jeito extravagante e sem papas na língua. Ela parece se divertir com a oportunidade de, livremente, flertar e sair com outras mulheres sem que isso se enquadre como traição à namorada.

Em uma conversa com Lexi, ainda no trecho inicial da experiência, Vanessa deixa escapar que está completamente segura em sua opinião sobre o matrimônio – que é contra, que “quer ser livre”, que “não se vê se comprometendo com uma única pessoa para o resto da vida” – e que se manteria fiel a isso ao longo do reality. Além do mais, Vanessa diz que não tem nada a perder por estar ali, uma vez que está certa de que Xander jamais se apaixonaria por outra pessoa.

Esse comportamento narcisista* da busca constante por admiração e validação do parceiro se intensifica cada vez mais, ao passo que Xander parece, de fato, se interessar por outra participante. Como se tivessem roubado seu brinquedo preferido no parquinho, Vanessa sai desse pedestal de autoconfiança, chora e demonstra uma vulnerabilidade excessiva a Xander, quase que como querendo ser acolhida (e escolhida, rs!) por ela.

Assim, no período em que elas moram juntas no casamento teste, a ideia de Vanessa já mudou completamente, e ela está muito convicta de que quer, sim, se casar com Xander. Essa mudança radical no discurso só evidencia o medo de perder sua namorada, fruto de um ego muito machucado ao perceber que não é tão única assim na vida de sua parceira.

A presença de Vanessa no reality destaca aos olhos dos espectadores sobre o comportamento naturalmente manipulador de pessoas narcisistas, e nos prepara para reconhecer sinais de como esse padrão de personalidade pode intoxicar um relacionamento, deixando a outra pessoa amarrada às sutis demonstrações de poder e terror psicológico.

*É claro que não estamos aqui para diagnosticar ninguém, afinal, não somos psiquiatras. Tudo isso se baseia em mero achismo e opinião pública cujas fontes são a internet!

Gênero e as relações sáficas (Sam e Aussie)

As participantes Sam e Aussie, que vieram como um casal ao "O Ultimato". Na foto, aparecem sorridentes e trajadas com formalidade.
(Imagem: Netflix / Reprodução)

Em um dos episódios mais para o final da temporada, onde o casal original Sam Mark e Aussie Chau já está passando pelo período de casamento “teste”, as duas estão sentadas na cozinha e têm uma importante conversa sobre os papéis de gênero na relação.

Nesse momento, fica claro ao espectador que Aussie não se vê exatamente como uma “mulher”. Ela não chega a se dizer trans, e a própria Sam a todo momento a trata com os pronomes ela/dela, como sua “namoradA”, mas, nessa conversa, introduz-se a curiosidade de que “Aussie” é um nome social. Então, supõe-se que ela se considere não-binário e só não esteja muito segura sobre o termo (afinal, a participante tem 42 anos e diversas vezes comenta sobre como o mundo está diferente do qual ela foi criada).

Para além de todas as questões familiares mal resolvidas com a sua orientação sexual e gênero, Aussie conta que, na infância, ao brincar de “casinha” com o irmão caçula, sempre o fazia ser a esposa, e ela própria preferia assumir o papel de marido. Aussie percebe, assim, que na relação de dois anos que teve com Sam, sempre esteve assumindo um papel de “homem da casa”, isentando-se de algumas obrigações básicas.

Essa conversa parece ser um ponto de iluminação para Aussie, que promete se esforçar para mudar sua conduta, e passar a ser mais participativa e responsável pelas tarefas domésticas.

Relacionamentos interraciais (Mal e Lexi)

As participantes Lexi e Mal conversando. Na foto, Mal aparece sorrindo para Lexi.
(Imagem: Netflix / Reprodução)

O casamento experimental de Lexi Goldberg (24) é com Mal Wright (36) que, diferente dela – branca e loira –, é uma  mulher negra. No período em que as participantes ainda estão escolhendo suas “novas” esposas, as duas dividem um diálogo muito interessante sobre a perspectiva da etnia na relação.

Mal começa perguntando se Lexi já namorou alguém que se parecesse como ela. Lexi prontamente responde que não, e diz com sinceridade que nunca havia parado para pensar nisso, uma vez que a única diferença que sua cabeça conscientemente traçou entre as duas era o fato de Mal ser uma lésbica “masculina”, enquanto Lexi é mais feminina, e diz se atrair, no geral, por outras também femininas.

Esse tipo de questionamento nunca é pautado em realities de relacionamentos, nem dentro das conversas entre casais heterossexuais. Segundo a TikToker em questão, é extremamente importante que esse diálogo seja trazido para um primeiro encontro, porque é muito pertinente saber como a outra pessoa se posiciona – se é racista, se tem familiares racistas etc. – porque, se for o caso, poupa-se o eventual envolvimento.

Este vídeo da TBlizzy comunica muito bem sobre o tema. Vale a pena conferir.

No que concerne à relação das duas, a conexão entre Mal e Lexi foi realmente genuína e transcende o programa. Não se desenvolveu nada romântico, mas as duas são, até hoje, amigas muito próximas, e contam que mantêm contato cotidianamente.

Autossabotagem (Rae)

Um dos casais originais de "O Ultimato" – Lexi e Rae – com as testas apoiadas uma na outra, conversando carinhosamente.
(Imagem: Netflix / Reprodução)

A autossabotagem é um padrão de comportamento em que o indivíduo cria obstáculos ou sabota ativamente o sucesso, inclusive de seus próprios relacionamentos. Isso pode ser resultado de insegurança, medo do compromisso, baixa autoestima, experiências passadas negativas ou crenças limitantes sobre o amor e o relacionamento.

Não fica claro qual desses problemas ao certo a participante Raelyn Cheung-Sutton (27) experiencia, mas é visível a relutância que ela tem em firmar um noivado com sua parceira original, Lexi, devido a razões internas que ela própria é incapaz de explicar, e que nada têm a ver com o amor e a vida dividida por elas. Em trechos de conversas, Rae traz alguns tópicos de autorrejeição.

A autorrejeição consiste na pessoa acreditar que não é digna de amor ou felicidade e, inconscientemente, buscar maneiras de provar a si mesma que essas crenças são verdadeiras. Ela pode se envolver com parceiros inadequados, sabotar relacionamentos saudáveis ​​ou buscar falhas em si mesma ou no parceiro.

No caso de Rae, fica clara a sua dúvida pelo medo de não ser o suficiente para manter um casamento estável e feliz. Em nenhum diálogo trazido ela culpabiliza alguma atitude ou característica de Lexi por suscitar esse sentimento – pelo contrário, ela exalta a parceira, e parece absorver toda a insegurança acerca do futuro para si própria.

Parceiros evitativos (Aussie)

Aussie, participante de "O Ultimato", com uma expressão preocupada.
(Imagem: Netflix / Reprodução)

Novamente, O Ultimato nos traz um recorte de personalidade extremo que dificulta relações: Aussie e seu caráter evitativo, que afeta a comunicação entre ela e Mildred (seu casamento experimental) e, ainda mais intensamente, ela e Sam.

O evitacionismo, no contexto psicológico, se refere aos indivíduos que tendem a evitar ou evitar situações sociais emocionalmente intensas ou conflitantes. Eles geralmente experimentam desconforto ou ansiedade em interações próximas ou em situações que envolvam a exposição de suas emoções ou vulnerabilidades. Esses comportamentos podem ser uma forma de proteção ou defesa contra possíveis rejeições, críticas, ou conflitos que possam surgir nas relações pessoais.

Pessoas evitativas podem ter experimentado eventos traumáticos, abandono emocional ou relacionamentos passados dolorosos, o que pode ter levado ao desenvolvimento dessa estratégia de evitação. No caso de Aussie, justifica-se essa forma de agir com a infância infeliz, na qual ela, em seu jeito “diferente” de ser, era muito reprimida pelos pais – e, até hoje, continua sendo.

É importante ressaltar que o comportamento evitativo não é necessariamente negativo ou patológico. No entanto, quando esses padrões se tornam excessivos, persistentes e interferem significativamente na qualidade de vida e nos relacionamentos, pode ser útil procurar apoio profissional.

O caso de Aussie é completamente extremo. Em todas as conversas que envolvem críticas ou pontos de desacordo, ela diz que quer interromper o assunto e, se a outra pessoa insiste em manter o canal de comunicação aberto, executa um modus operandi até grosseiro de se levantar, pegar a mochila e ir embora. Isso virou meme na internet, mas, na verdade, é uma conduta muito triste, reflexo de uma profunda imaturidade emocional.

Dado que o reality foi filmado há dois anos, nós hoje esperamos que Aussie tenha trabalhado para melhorar a sua forma de se comunicar, e que ela e Sam estejam bem.

Inversão de papéis de gênero em abusos psicológicos e físicos (Tiff e Mildred)

Colagem de cenas de cenas do episódio final do reencontro de "O Ultimato". À esquerda, Tiff com uma expressão desestabilizada e chorosa; à direita, Mildred, impassível.
(Imagem: Netflix / Reprodução) [Na esquerda, Tiff; na direita, Mildred]

No geral, assume-se que os abusos psicológicos e físicos dentro de um relacionamento vem do homem, mas esse é um erro comum. Relacionamento abusivo é relacionamento abusivo – até mesmo quando se fala em casais lésbicos.

Em O Ultimato, não tarda para que o espectador entenda que, dos cinco casais, a relação de Tiffany Der (32) e Mildred Woody (33) é a mais problemática. No primeiro episódio, as duas comentam que já “terminaram mais vezes do que podem contar” – e se isso não é sinal vermelho para toxicidade, nos diga o que é!

Na fase do casamento experimental, ambas também passam por uma montanha-russa de sentimentos, discussões e muito drama. Quando começam a discutir, é frequente que uma queira falar mais alto que a outra, e tudo escalona muito rápido para dedo na cara e expressões hiperventilantes de raiva. De toda forma, por mais explosivas que fossem, no dia do ultimato final, Tiff se ajoelhou e pediu a mão de Mildred em casamento.

No episódio do reencontro, um ano depois de tomada a decisão, Tiff e Mildred se sentam em lados opostos e não se dirigem palavras até que a apresentadora pergunte como estão. Não surpreende ninguém que elas tenham se separado, é claro. Mas o que choca é a revelação de Mildred assumindo ter sido presa por violência domiciliar a Tiff.

A participante conta que, em uma das acaloradas discussões, ela quebrou um porta-retratos e jogou uma grade de metal em cima de Tiff, que em resposta, chamou a polícia. Na delegacia, a vítima amenizou as queixas para que sua namorada “não perdesse a guarda do filho, já que ela é uma mulher latina, mais propensa a sofrer preconceito étnico”. 

Ainda no episódio da reunion, Mildred detalhou alguns fatos que fizeram o noivado das duas ter se encerrado, justificando o seu comportamento agressivo com a dificuldade de Tiff de se conectar com o seu filho. A discussão entre as duas é uma cena tensa e difícil de assistir. As reações corporais de Tiff e o desespero de quem sabe que está sofrendo gaslighting (um tipo de manipulação da qual o abusador tenta fazer a vítima duvidar da sua própria versão dos fatos) são de deixar qualquer um desconfortável.

É importante ressaltar que Mildred é a figura mais “feminina” do casal, enquanto Tiff possui cabelo curto e se veste de forma masculinizada. Assim, percebe-se uma inversão de papéis no que se espera de um abuso, uma vez que ele é promovido pela pessoa aparentemente mais “frágil” e “inocente” (no geral, atribuído à mulher em relações héteros).

Isso causa um estranhamento tão grande nas pessoas presentes, que ninguém parece se movimentar para apartar a situação ou questionar quão longe as acusações trazidas por Mildred estão indo. Talvez, a reação alheia fosse diferente se Tiff fosse a pessoa promovendo o gaslighting e assumindo ter violentado a sua, até então, noiva.

Muitos espectadores posicionaram-se contra a direção de O Ultimato por ter admitido a presença de Mildred no set mesmo sabendo que ela havia sido presa por violência doméstica. Mas, para além de declarações das demais participantes em repúdio a esse tipo de abuso no TikTok e no Instagram, não houveram outras repercussões por parte do programa.

Diálogos sobre poliamor (Yoly e Xander)

As participantes Yoly (direita) e Xander (esquerda), segurando as mãos e sorrindo uma à outra.
(Imagem: Netflix / Reprodução)

O poliamor é uma forma de relacionamento consensual em que as pessoas envolvidas têm a liberdade de estabelecer múltiplos vínculos românticos ou afetivos simultaneamente. No poliamor, todas as pessoas envolvidas estão cientes e consentem com a não-monogamia, permitindo que seus parceiros tenham relacionamentos íntimos e amorosos com outras pessoas.

É importante destacar que o poliamor se baseia no consenso, comunicação aberta, honestidade e respeito mútuo. Esses relacionamentos podem assumir diversas formas, podendo incluir triângulos amorosos, relacionamentos em grupo, redes poliamorosas ou qualquer outra configuração que as pessoas envolvidas considerem adequada para elas, com todos os acordos bem definidos e limites bem comunicados.

Não há uma presença honesta do que se considera poliamor em O Ultimato, mas uma situação bastante específica abre portas para esse tipo de discussão: o conflito romântico que envolve o apaixonamento entre Yoly Rojas (34) e Xander Boger (30). Ambas viveram um casamento experimental e acabaram mergulhando de cabeça na experiência, abrindo-se para as carícias afetivas e as atividades sexuais. Ao término do período de três semanas, elas confessaram estar apaixonadas uma pela outra, bem como o desejo de seguirem com um casamento de verdade.

Porém, elas ainda amavam suas parceiras originais. Yoly voltou para Mal, assim como Xander voltou para Vanessa, e elas fizeram o possível para retomar a rotina com suas amadas, ainda que sofressem de saudade. No sentido da clareza, ambas contaram a Mal e Vanessa sobre o que viveram, mas prometeram se esforçar para deixar o episódio para trás, contanto que fossem respeitadas no seu processamento de luto pelo fim de um relacionamento que tinha tudo para ser próspero. Tanto Mal, quanto Vanessa, concordaram com a situação. 

Mas a verdade é que nem Yoly, nem Xander, queriam interromper o contato. E não interromperam. Elas continuaram se falando pelo Instagram, e quando o programa promoveu um jantar com todo o elenco, elas não esconderam as carícias, os sorrisos, e as conversas em particular que quase gritavam tensão sexual para todas verem. É aí que entra o problema, porque Mal e Vanessa se sentiram desrespeitadas (e não à toa!). 

No dia do ultimato, Xander escolheu deixar Vanessa, pois seu coração estava com Yoly. Mas Yoly acabou optando por se comprometer a Mal e, depois de tê-lo feito, se encontrou com Xander, chorou e se questionou acerca da decisão. Dito isso, no episódio de reencontro, é revelado que o noivado das duas durou menos de um mês, por mais que o casal que supostamente o dificultou – Yolander – não tenha seguido em frente.

“No dia do jantar, aquilo não era uma conversa de término”, Mal apontou no reunion desta edição de O Ultimato, um ano depois. “Revendo os episódios e tendo acesso às cenas das quais eu não estava presente, eu me senti fazendo papel de otária ao ter aceitado você mesmo sabendo que você amava duas ao mesmo tempo”, completou.

Trauma alheio é entretenimento?

Foto com foco no rosto da participante Mal, com fones de ouvido e lágrimas saindo dos olhos.

(Imagem: Netflix / Reprodução)

Não, mas talvez seja aprendizado.

De fato, O Ultimato: Queer Love não é um daqueles realities como BBB ou DFCEx que as pessoas assistem só para ter algo para comentar sobre. Ele pega em pontos de gatilho muito particulares para cada um, uma vez que se acompanham as dificuldades amorosas e os vícios sociais daquelas participantes – mulheres lésbicas, bissexuais e pansexuais, e pessoas não-binárias, que são reais.

No entanto, embora o formato acelerado do programa ofereça uma experiência intensa de relacionamento, é importante lembrar que conhecer alguém verdadeiramente leva tempo. Sendo assim, as situações às quais as participantes são expostas no programa podem não ser totalmente representativas de um relacionamento autêntico e longevo. 

Assistir ao episódio de reencontro, gravado um ano depois das filmagens do reality, nos ajuda a entender quais de fato foram as feridas socioafetivas que se escancararam devido ao experimento, e como essas pessoas seguiram com sua vida depois disso.

E, por um lado, é até bonito de ver que mesmo os casais que se separaram conseguiram ficar em paz com o término e estão trabalhando suas questões internas sozinhas. Pelo outro, isso também nos ajuda a refletir sobre os vícios de relacionamentos que percebemos ter mesmo em relações fora da norma hétero, uma vez que eles são espelhados nas protagonistas do programa.

Mas e você? Concorda com o que foi discutido no artigo? Quais aprendizados tirou de O Ultimato: Queer Love? Compartilhe nos comentários e nos siga nas redes sociais para ficar por dentro de mais discussões quentes como esta!

Iana Maciel
Bacharelanda de Comunicação Social pela ECA/USP. Filha de Zeus, tributo do Distrito 1 e artilheira de Quadribol da Grifinória. Escondo um passado de jogadora de RPG por trás da cara de brava e da prática de esportes, mas quem me conhece sabe que eu adoro marcar de jogar um LoLzinho nas horas vagas.