Mar Branco | Fatos do narcotráfico que inspiraram o novo sucesso da Netflix

A nova série da Netflix a alcançar o topo das mais assistidas é Mar Branco (2023), uma aventura portuguesa baseada em fatos reais de um episódio do início dos anos 2000 que descarregou meia tonelada de cocaína em uma ilha açoriana.

No Brasil, ela foi chamada de Mar Branco como um spoiler para a trama, mas o nome original – Rabo de Peixe – reflete à região da ilha na qual ela se ambienta, que é tão pobre que se diz que os moradores locais, muitos dos quais trabalhadores da pesca, acabam se alimentando dos rabos dos peixes, pois a parte “boa” acaba tendo que ser comercializada.

Eu estou passando um semestre acadêmico em Lisboa, Portugal, e nas últimas semanas notei a imensa quantidade de publicidades em espaços comuns do metrô e em transportes públicos no geral com o pôster de Rabo de Peixe. Fiquei curiosa. Enfim, no dia 26 de maio, a série lusitana finalmente chegou ao catálogo, e rapidamente foi parar no topo das mais assistidas no canal de streaming.

Comecei a assistir, então. Acabei me interessando muito pelo tema e lembrei-me de uma curiosidade histórica do narcotráfico que imaginei que fosse referência para a série. Por fim, após uma rápida pesquisa, percebi que de fato ela é baseada em fatos reais, mas em particular um acontecimento lusitano. 

Neste artigo, falarei sobre os fatos do mundo do comércio ilegal de drogas que ajudaram a elaborar a história desse novo sucesso da Netflix.

“Mar Branco”: sinopse, colocações e reviews

Em "Mar Branco", os amigos Eduardo, Rafael e Sílvia discutem sobre a possibilidade de comercializarem a cocaína encontrada no mar. Cena reproduzida da série da Netflix.

(Imagem: Netflix / Reprodução)

A série se ambienta em uma pequena vila localizada no município da Ribeira Grande, em uma ilha da região dos Açores, no meio do Oceano Atlântico, conhecida como Rabo de Peixe. A trama é centrada no personagem Eduardo (interpretado por José Condessa), que é repleto de sonhos reprimidos pelo trabalho compulsório com a pesca, uma vez que seu pai, ao longo dos anos, tem passado por uma severa perda de visão.

Inconformado com as péssimas condições em que é obrigado a viver e sem ter como dar o aporte financeiro necessário para tratar da doença do pai, sua vida dá um giro de 360º ao que ele se depara, escondido em uma parte da costa da ilha, com a carga de um veleiro naufragado de mais de uma tonelada de cocaína. É nesse momento em que ele confidencia a descoberta aos amigos, e os quatro resolvem utilizar da oportunidade, tida como um sinal de Deus, para dar outros rumos às suas vidas… Mas é claro que tudo isso vem junto com uma maré de azar envolvendo a polícia, a máfia italiana, entre outros desafios.

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A produção portuguesa de direção de Augusto Fraga não precisou nem de uma semana para entrar no topo das séries mais assistidas em mais de 30 países do mundo. De acordo com o IMDb, a série já alcança nota de 8,0, com base em cerca de duas mil avaliações. Já no Rotten Tomatoes, Mar Branco tem uma taxa de aprovação de 93% da audiência.

Trazendo um panorama geral dos comentários de especialistas internacionais, o jornalista Joel Keller, do Decider, elogia bastante o original da Netflix. Já Divya Malladi, do Digital Mafia Talkies, traz a discussão sobre esse clichê merecer, ou não, a chance de ser assistido, comparando-o inclusive com outros sucessos do streaming, como Narcos (2015) e Outer Banks (2020). Por fim, Jonathon Wilson, do Ready Steady Cut, tece comentários mistos, colocando que ela “tem algumas performances e momentos agradáveis, mas que estes são prejudicados por um roteiro excessivamente previsível”.

CONFIRA O TRAILER:

Antes de mais nada, falemos do “Verão da Lata”

Fotografia das latas de "suco de uva" que na realidade eram recheadas com maconha transportada ilegalmente da Tailândia. Este é um fato histórico de 1987 que contribuiu para inspirar "Mar Branco".

(Imagem: Arquivo Nacional / Reprodução)

O “Verão da Lata” foi um evento ocorrido no Brasil no final de 1987 e começo de 1988 nas regiões Sudeste e Sul. Durante esse período, diversas latas contendo maconha foram encontradas no litoral, percorrendo das praias do Cabo Frio, no Rio de Janeiro, até a Praia do Cassino, no Rio Grande do Sul. Estima-se que mais de dez milhares de latas tenham sido lançadas ao mar, contendo cerca de 22 toneladas de maconha no total.

Investigações foram conduzidas para identificar os responsáveis pelo envio das latas ao mar, mas até hoje não se chegou a uma conclusão definitiva sobre os autores. Acredita-se que venha do tráfico internacional realizado pelo navio Solana Star, que saiu do Panamá, foi carregado na Austrália por toneladas de maconha tailandesa, e ia em direção aos Estados Unidos, quando foi interceptado e confrontado por outros narcotraficantes. Os tripulantes acabaram lançando o contrabando ao mar para evitar a apreensão dele pelos rivais.

Com a popularização do fenômeno das latas “mágicas”, diversas pessoas foram às praias para tentar resgatar alguma. Isso porque, sobretudo, foi atestado que a droga era da mais alta qualidade. Assim sendo, as praias, já cheias com a chegada do verão, foram superpopuladas de potenciais traficantes, usuários e civis em geral em busca das latas de maconha. Tal situação também aumentou o fluxo de patrulha policial – tanto para apreender, quanto para tirar proveito próprio.

Com essa tensão, diversos lugares começaram a vender “latas de maconha” sem maconha propriamente dita. Dessa forma, acabaram confundindo os policiais entre latas legítimas com maconha e latas que eram apenas acessórios decorativos, o que propiciou que muitas pessoas conseguissem deixar o litoral na posse de uma lata com a droga propriamente dita. 

Capa do livro "Verão na Lata", de Wilson Aquino, publicado em 2012. O livro documenta o fato histórico de 1987 que contribuiu para inspirar "Mar Branco".

O evento virou meme na época, e repercutiu na cultura popular na forma de gírias – o que era bom, era “da lata” – e até em outras formas de consumo e revenda. A maconha carregada no navio era prensada com mel e, por gerar efeitos muito intensos em quem a consumia, passou a ser reprensada e redistribuída para que pudesse durar mais. Essa forma de distribuir a droga, sobretudo, revolucionou o narcotráfico brasileiro.

(Imagem: Wilson Aquino / Divulgação)

Em 2012, o jornalista Wilson Aquino publicou Verão da Lata, um livro-documental sobre os fatos. Há, inclusive, um curta-metragem homônimo produzido por Haná Vaisman e Tocha Alves em 2014. Assista ao trailer:

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“Verão do Pó”: de onde vem o baseado em fatos reais de Mar Branco

Uma vista de cima das belezas da região dos Açores, em Portugal. Fotografia por Ferdinand Stöhr, em reprodução.

(Imagem: Ferdinand Stöhr, Unsplash / Reprodução)

Em junho de 2001, início do verão europeu, aconteceu um fenômeno similar na ilha de São Miguel, nos Açores, Portugal: o episódio ficou marcado como o Verão do Pó, uma vez que o naufrágio em questão descarregou meia tonelada de cocaína à costa do vilarejo do Rabo de Peixe.

Diante de alguns problemas na sua embarcação que vinha da Venezuela e tinha destino a Espanha, o italiano Antoni Quinzi, autor do tráfico, que mais tarde foi preso, tentou se livrar da carga afundando os pacotes em uma rede de pesca ancorada para recuperá-los mais tarde, depois de reparar seu veleiro avariado, e seguir viagem em segurança. No entanto, devido à agitação do mar, a cocaína foi emergindo aos poucos.

Dias depois, a população local começou a encontrar pacotes estranhos na areia das praias, sem saber inicialmente do que se tratava. Esses pacotes continham cocaína em um alto grau de pureza, cerca de 80%, e o valor estimado da carga, nos dias atuais, seria de aproximadamente 150 milhões de euros. À época, era possível encontrar copos cheios de cocaína sendo vendidos por apenas 25 euros em bares.

Grande parte dessa droga que não foi apreendida era vendida a preço de banana nas vielas de casinhas históricas e pintadas em tons pastéis da região permeada por pescadores e trabalhadores rurais. Inclusive, há relatos de uma dupla de pescadores que conseguiu juntar uma quantidade estrondosa dessa mercadoria ilegal, e acabou fazendo uma espécie de monopólio de venda, curiosidade que certamente foi o pontapé inicial na inspiração para a produção de Mar Branco.

O “modelo português” na abordagem às drogas

Baseado de maconha sendo produzido manualmente. Fotografia por Jason Redmond, em reprodução.

(Imagem: Jason Redmond, Reuters / Reprodução)

Devido à localização estratégica nas rotas de comércio entre a Europa, África e Ásia, os Açores se tornaram uma escala importante desde os tempos do Império Português, que começou a colonizar essas belas ilhas vulcânicas no século XV. A subsistência dos habitantes sempre dependeu da agricultura, pesca e pecuária. É difícil imaginar o impacto que meia tonelada de cocaína pode ter em uma comunidade desse tamanho, especialmente considerando que eles não tinham familiaridade com essa droga ao longo do tempo. Até então, heroína e haxixe eram drogas mais comumente encontradas do que a cocaína.

No início dos anos 2000, o Rabo de Peixe tinha pouco mais de 7 mil habitantes, com igrejas dos século XVI, XVII e XVIII e um calendário repleto de festas religiosas tradicionais. Não é o cenário mais óbvio para, de repente, se tornar uma “cocaínolândia”. Porém, em questão de semanas, um número alarmante de pessoas chegou ao hospital com sintomas de enfarte, e os casos de overdose se acumularam…

Como uma forma de contenção dos danos causados pelo Verão do Pó e também pela alta transmissão do HIV, no final de 2001, o governo de Portugal passou a adotar uma política progressista no combate às drogas, até hoje tida como referência de estudo por vários outros Estados no mundo. Esse modelo é baseado em uma abordagem mais voltada para a saúde pública e busca reduzir os danos causados pelo uso de drogas, em vez de focar no tratamento criminoso e nas ações punitivistas.

As principais características do modelo português incluem a descriminalização do consumo de drogas (os usuários não são mais tratados como criminosos, mas sim como pessoas que necessitam de apoio e assistência), o enfoque na prevenção e tratamento da dependência química (como programas de troca de seringas e distribuição de naloxona, um medicamento que reverte a overdose de opióides) e a integração de serviços de saúde para oferecer suporte abrangente (acesso a tratamento médico, aconselhamento psicológico e assistência social para ajudar os indivíduos a superarem a dependência).

Muitos especialistas destacam os resultados positivos desse modelo progressista, como a redução do uso problemático de drogas, das overdoses e das taxas de transmissão de doenças relacionadas à dependência química.No entanto, é importante ressaltar que cada país possui contextos e desafios únicos, e a aplicabilidade do modelo português pode variar em diferentes contextos culturais e sociais.

Uma (breve) resenha da autora

Personagens Arruda e Eduardo tendo uma conversa para lá de tensa em "Mar Branco". Cena reproduzida da série da Netflix.

(Imagem: Netflix / Reprodução)

No atual contexto da minha vida, eu acompanho a séries de forma degustativa, em pequenas doses, de forma que – confesso – até então, não consegui terminar Mar Branco. No entanto, nos primeiros três episódios que assisti, já aconteceram diversas situações e reviravoltas, inclusive tratando de assuntos polêmicos que fogem do tema principal da relação entre pobreza e tráfico. Então, é válido dizer que estou gostando!

De toda forma, acredito que vale um parabéns pelo time de produção do segmento português da Netflix pela união de dois fatores: a exaltação das belezas (e tragédias) das ilhas açorianas, um patrimônio nacional tão pouco comentado tanto cultural, quanto midiaticamente, em paralelo com a retratação de uma discussão que nunca deixa de ser importante, que é o tráfico e o consumo de drogas.

Tendo um enredo clichê ou não, a verdade é que é fácil comover o público com a narrativa do bandido que é o mocinho e vice-versa. As pessoas gostam disso. É excitante, especialmente se esses protagonistas são personagens esféricos que carregam motivações legítimas por trás de seus feitos moralmente questionáveis, como é o caso do nosso Eduardo e dos amigos Sílvia (Helena Caldeira), Rafael (Rodrigo Tomá) e Carlinhos (André Leitão).

Então, para quem busca um entretenimento rápido na forma de uma história de aventura policial cheia de altos e baixos, inclusive episódios calientes de romance, e quer obter novos conhecimentos históricos sem nem perceber que está aprendendo, Mar Branco certamente é uma série que eu indico. 

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E se você já assistiu ou, assim como eu, tá assistindo aos poucos, que tal deixar seu review aí nos comentários?! Aliás, não esqueça de nos seguir em nossas redes sociais – Twitter e no Instagram – para mais noticias, conteúdo exclusivo e várias interações.

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Iana Maciel
Bacharelanda de Comunicação Social pela ECA/USP. Filha de Zeus, tributo do Distrito 1 e artilheira de Quadribol da Grifinória. Escondo um passado de jogadora de RPG por trás da cara de brava e da prática de esportes, mas quem me conhece sabe que eu adoro marcar de jogar um LoLzinho nas horas vagas.