Com o início confirmado das gravações da terceira temporada de House of the Dragon, muito volta a se debater sobre a tensão sexual entre as protagonistas da série.
Quando os créditos de Game of Thrones subiram pela última vez em 2019, muitos fãs pensaram que era o fim da jornada pelo universo televisivo baseado nos livros de George R. R. Martin. Mas a HBO tinha outros planos. Em 2022, House of the Dragon (baseada no livro A Dança dos Dragões, de 2019) chegou para nos transportar 200 anos antes dos eventos que acompanhamos por oito temporadas, mergulhando nas raízes da Casa Targaryen e seu domínio sobre Westeros sobre o lombo de dragões.
A série estreou em agosto de 2022 e rapidamente se tornou um fenômeno global. O primeiro episódio atraiu quase 10 milhões de espectadores apenas na noite de estreia – o maior lançamento da história da HBO. Ao longo de sua primeira temporada, a produção conquistou um Globo de Ouro de Melhor Série Dramática e garantiu uma base sólida de fãs ansiosos pela continuação, que veio em 2024.
Além da nostalgia, House of the Dragon acertou em cheio naquilo que muita gente queria (e sentia falta): dragões de verdade, não só como apêndices digitais, mas como forças motrizes da narrativa, personagens centrais. Visuais impecáveis, figurinos de cair o queixo e uma trilha sonora que remete à antiga Westeros contribuem para a imersão total nesse mundo brutal.
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Só que talvez o grande trunfo da série seja outro: o roteiro intimista. Ao invés de espalhar a atenção por múltiplas casas e regiões, o foco é (quase) absoluto na Casa Targaryen e suas disputas internas. Isso permite mergulhar fundo em personagens complexos, sempre à beira do abismo da loucura – tradição muito bem enraizada no sangue dourado dos Targaryen, que todos presenciaram na pele de Emilia Clarke (intérprete de Daenerys em Game of Thrones) em 2019.
Rainhas de Sangue: o poder (e o preço) de ser mulher em Westeros

(Imagem: HBO / Divulgação)
No centro de toda a trama de HOTD estão duas figuras femininas, cujas trajetórias transformam afeto em rivalidade mortal: Rhaenyra Targaryen e Alicent Hightower.
Rhaenyra (Milly Alcock jovem, Emma D’Arcy adulta) carrega toda a pressão de ser a primeira mulher nomeada herdeira do Trono de Ferro. Nessa transição de adolescente “louca por bolos” para líder endurecida pela guerra e pela traição, ela segue um arco que ecoa o dilema de sua sucessora Daenerys: afirmar-se num campo minado por homens, desafiando a ordem vigente.
Por outro lado, temos Alicent Hightower (Emily Carey jovem, Olivia Cooke adulta), cuja trajetória é marcada por manipulação, desconforto e, em última instância, sobrevivência. Filha de Otto Hightower, ela é usada pelo pai para se aproximar do rei recém-viúvo, resultando no emblemático casamento com o muito mais velho Viserys – pai de sua melhor amiga de infância, que é ninguém menos que Rhaenyra.
A série não se esquiva de mostrar o desconforto de Alicent com sua situação. Em uma cena um tanto quanto perturbadora, vemos Otto praticamente prostituindo a própria filha, enviando-a aos aposentos do rei em luto. A expressão de Alicent de nojo (e tristeza) enquanto se prepara para “confortar” o rei diz tudo sobre como ela se sente sendo usada como peão político.
É essa dinâmica que torna a deterioração da amizade entre Rhaenyra e Alicent tão dolorosa de assistir. Duas jovens mulheres, inicialmente unidas por um vínculo genuíno, são separadas por circunstâncias além de seu controle e transformadas em peças de trincheiras opostas de uma guerra de rainhas.
Queerbait ou tensão legítima nas protagonistas de House of The Dragon?

(Imagem: HBO / Divulgação)
E aqui chegamos ao cerne da questão proposta: seria House of the Dragon mais um caso de queerbait na televisão?
A série começa estabelecendo uma conexão profunda entre Rhaenyra e Alicent que beira o romântico. Em uma cena memorável logo no primeiro episódio, Rhaenyra confessa a Alicent que gostaria de levá-la na garupa de seu dragão e fugir para longe, escapando das responsabilidades e expectativas que as cercam. O olhar trocado entre as duas adolescentes carrega uma intensidade que muitos espectadores interpretaram como algo além da amizade.
“Vamos voar para Pedra do Dragão. Você pode se sentar atrás de mim em Syrax. Podemos comer bolos e alimentar os dragões e nunca mais olhar para trás.”
(Rhaenyra Targaryen, House of The Dragon – S01E01)
Em uma entrevista para o site Digital Spy, as atrizes Emma D’Arcy e Olivia Cooke, que interpretam as personagens em etapa adulta, confessam que há, de fato, uma conexão erótica entre as personagens:
“Acho que sempre há uma energia erótica dentro dessas intensas amizades adolescentes”, disse Emma (Rhaenyra) ao site. Em segundo momento, Olivia (Alicent) confirmou: “Há um senso de propriedade, há um ciúme. Você está interpretando relacionamentos românticos adultos um com o outro. Sim, sempre há espaço para isso”.
Essa proposta de fuga, feita antes que o peso da coroa caísse sobre Rhaenyra (após a trágica morte de sua mãe Aemma durante o parto) e antes que Alicent fosse forçada ao casamento político que inicia a ruptura entre as duas, carrega uma nostalgia de possibilidades não realizadas que permeia toda a série.
No entanto, a narrativa nunca desenvolve explicitamente esse subtexto romântico. A relação entre as duas permanece em um território ambíguo, permitindo múltiplas interpretações. Para alguns, isso é um exemplo clássico de queerbait – insinuar uma relação queer para atrair certo público, sem nunca concretizá-la na narrativa.
Outros argumentam que essa ambiguidade é proposital e reflete a realidade histórica (mesmo em um mundo fantasioso) onde tais sentimentos frequentemente precisavam permanecer não ditos – e talvez nunca serão. Além disso, a complexidade da relação entre Rhaenyra e Alicent – de amigas íntimas a inimigas mortais – ganha camadas adicionais com esse “ei, tu é?…” eterno nas entrelinhas.
Rhaenyra é LGBTQIAP+: e agora?

(Imagem: HBO / Divulgação)
Na segunda temporada, a série dá um passo além. Em um momento marcante, no episódio 6, Rhaenyra beija Mysaria (vivida por Sonoya Mizuno), sua conselheira e antiga affair de Daemon Targaryen.
Aqui está o reconhecimento canônico de que Rhaenyra é bissexual, algo nunca abordado nos livros originais. Para quem busca representatividade, é uma evolução; mas o roteiro ainda é tímido, não aprofunda muito esse elemento – fica claro que há terreno fértil para explorar melhor esse lado na personagem, principalmente em tempos contemporâneos em que representatividade efetiva faz diferença.
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O potencial para histórias LGBTQIAP+ é imenso, não apenas para Rhaenyra, mas quem sabe também para Alicent. Agora, cabe à HBO e aos seus roteiristas decidirem se vão avançar e construir novas camadas nessas trajetórias ou se manterão certas possibilidades apenas nos detalhes, alimentando o, até então, inegável, queerbait.
House of the Dragon e um legado de reticências

(Imagem: HBO / Divulgação)
A versão em cores de A Dança dos Dragões ainda está traçando seu legado nas telas – e faz isso colocando as mulheres na linha de frente do poder, de maneira que poucas séries de fantasia épica ousaram até hoje.
A trama não apenas gira em torno de uma guerra civil, mas de uma guerra civil entre duas facções lideradas por mulheres. Assim, tanto o livro quanto a própria série revelam, capítulo após capítulo, que, embora figuras masculinas como Viserys, Otto Hightower, Daemon Targaryen e Criston Cole gostem de acreditar que detêm as rédeas da história, são Rhaenyra e Alicent quem realmente determinam o curso dos eventos em Westeros.
Esse protagonismo feminino desconstroi preconceitos persistentes, mostrando que mesmo num cenário medieval, patriarcal e tradicionalmente hostil às mulheres, elas exercem um poder político real e transformador. Elas podem não estar sempre sentadas no trono, mas são suas estratégias, alianças e decisões que escrevem o destino do reino. Em tempos tão atuais de debate sobre espaço e voz feminina na política, a série não poderia ser mais pertinente: ainda hoje, vemos essa tentativa de apagamento e sub-representação de figuras femininas nos grandes centros de tomada de decisão.
Um dos maiores símbolos dessa luta é Rhaenys Targaryen, a célebre “Rainha-Que-Nunca-Foi” (originalmente “The-Queen-That-Never-Was”), interpretada por Eve Best. Décadas antes dos eventos principais da série, Rhaenys deveria ter herdado o trono, mas foi preterida unicamente por ser mulher. Sua presença funciona como um lembrete constante – e incômodo – do que as mulheres podem conquistar e de tudo que pode lhes ser negado, alimentando discussões não só sobre o ciclo do poder em Westeros, mas sobre o próprio ciclo do poder no nosso mundo real, onde a exclusão feminina da política ainda é uma batalha cotidiana.
À medida que House of the Dragon avança, especialmente agora com a segunda temporada já encerrada e a terceira temporada em fase de produção (com previsão de estreia apenas para meados de 2026), o impacto da série cresce também fora do streaming.

(Imagem: HBO / Divulgação)
Fica a expectativa de que o roteiro aprofunde ainda mais essas temáticas de representatividade – tanto no campo do empoderamento feminino quanto no campo queer. O público já viu Rhaenyra expressar sua bissexualidade ao beijar Mysaria mas, até agora, esse lado da personagem e suas consequências narrativas seguem pouco explorados.
Se House of the Dragon vai se eternizar como queerbait ou ousar ir além, só o tempo dirá. O que é certo, entretanto, é que o fogo Targaryen segue prometendo derreter tabus, desafiar expectativas e, sobretudo, lembrar que lugares de poder podem – e devem – ser femininos.
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