[Nota: Essa crítica contém referência a abuso sexual, transtornos alimentares, automutilação e o método de moderação no espectro da sobriedade]
“Dançar com o diabo” seria algo como a expressão brasileira “brincar com fogo”, mas mil vezes mais intensa. É impactante, da medo e angustia. Mas é a verdade de Demi Lovato. A cantora, após passar facilmente mais da metade de sua vida sofrendo uma pressão imensa e incapaz de controlar sua própria vida, tomou as rédeas e contou a sua verdade em Demi Lovato: Dancing With The Devil.
Para a mídia e os fãs, é chocante o som disso porque Lovato esteve em frente às câmeras durante sua vida toda. Ocupou posições de defensora, ativista, role model e mais vários outros adjetivos, e quando isso se torna parte da sua marca, a pressão em permanecer assim só aumenta. Foi isso que levou a cantora à sua overdose, em julho de 2018. Dancing With The Devil escolhe uma narrativa linear, que através de quatro episódios, passa pelos principais pontos que levaram a cantora à overdose, e depois os desdobramentos disso. Assim, com entrevistas de familiares, colegas de trabalho e amigos, Michael D. Ratner, diretor, pede honestidade à todos. O resultado é uma conversa franca para a audiência.
No primeiro episódio, títulos que aparecem na tela informam que as primeiras cenas do documentário, onde vemos shows e backstage, são, na verdade, de um outro documentário planejado para a turnê de Lovato em 2018, a Tell Me You Love Me Tour, que nunca foi finalizado. Logo em seguida, a voz de Diana De La Garza, mãe de Demi, aparece: “Esse foi o melhor show que você já vez. Só vai melhorar daqui pra frente”. Na tela, porém, está escrito que aquilo aconteceu um mês antes da overdose.
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Assim, as imagens de 2018 são colocadas em contraste com a vida atual de Demi, mostrando como que a cantora conseguia esconder seu vício de pessoas próximas, e como sua vida era miserável. O documentário mostra a faceta mais honesta que vemos de Lovato até então. “Eu só vou dizer tudo e se não quisermos usar, podemos tirar“, comenta. Logo em seguida, é mostrado que a cantora voltou a beber em 2018, e, mais tarde, voltou a utilizar drogas.
A partir dessa revelação, os pontos se conectam e a narrativa se forma. Lovato se abre fornecendo todas as peças do quebra-cabeça que sua vida se mostrou a ser. Desde o que a levou a escrever Sober até os minutos anteriores de sua fatídica noite da overdose. Isso tudo apenas no primeiro episódio.
Com mais três episódios, Dancing With The Devil parece ser sobre mais de uma pessoa, pela quantidade de informação, mas como a cantora mesmo disse, ela já está em sua nona vida. E, por isso, alguns tópicos mostrados podem parecer apenas a superfície de algo muito maior. Isso é verdade, mas até que ponto Demi Lovato precisa mesmo virar um livro aberto?
A pressão colocada em jovens mulheres da indústria – e nela como um todo, seja nos cinemas ou na música – é ensurdecedor. Mulheres são alvos das mais desnecessárias críticas, ao mesmo tempo que são as mais cobradas. Nossa sociedade machista não é justa com elas, e com certeza não foi com Lovato. Ela, que esteve em frente às câmeras desde os 6 anos, vivia no meio disso tudo. Bulimia, automutilação, transtornos alimentares, vícios e mentiras era o mundo dessa garota de 18 anos. E para quem construiu uma marca e uma voz em cima da superação de tudo isso, perfeição era o mínimo exigido. Seis anos sóbria era o mínimo exigido.
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E Lovato nunca pediu por isso, nunca quis ser esse símbolo. Então pra que explicar mais do que a cantora já está cansada de precisar falar? Em certo momento do documentário, Demi, visivelmente cansada, revela que, em sua adolescência, perdeu a virgindade através de um estupro por um colega de trabalho ainda em sua época Disney, enquanto mantinha um anel de castidade. Ela nunca havia contado essa história antes, e seu tom de voz sugere que era algo que a cantora enfrentava internamente por anos.
“Estávamos nos beijando e aí eu disse – ei, isso não vai mais longe, sou virgem e não quero perder desse jeito. E aquilo não importava para ele, ele fez do mesmo jeito. E eu internalizei aquilo e disse que era minha culpa porque mesmo assim, eu fui para o quarto com ele”
“A minha história #MeToo…“, começa Demi, se referindo ao movimento que ganhou força em 2017, onde mulheres compartilhavam suas experiências de assédio e abuso de poder especialmente no local de trabalho. “… foi eu contando para alguém que uma pessoa fez isso comigo e ele nunca sofreu nenhuma consequência. Nunca foi tirado do filme que estava. Mas eu fiquei quieta porque eu sempre tinha algo para falar, e estou cansada de abrir a minha boca, então essa é a verdade“, finaliza.
E está aí a resposta. Lovato não precisa contar minuciosamente tudo que já passou, ela está exausta disso na verdade. A cantora mostra que não deve nada para ninguém, está vivendo sua vida única e exclusivamente para ela mesma e simplesmente decidiu esclarecer sua overdose e ser clara quanto ao momento de sua vida agora.
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No entanto, mesmo com muita informação, é dado tempo para as nuances se estabelecerem e permitir Lovato relatar suas emoções e ações, tanto ao estupro em sua adolescência, quanto ao abuso sexual que sofreu pelo seu traficante na noite da overdose. “Ele me deixou lá para morrer“, conta.
Os quatro episódios são montados de forma a mostrar que Lovato tem sim noção de tudo que aconteceu com ela. Portanto, as informações são trazidas de forma cuidadosa e responsável, principalmente no final da produção, onde Lovato revela ter optado pelo conceito de moderação em seu processo de recuperação. Conceito esse que se baseia no uso controlado de substâncias leves, no caso da cantora, álcool e maconha. Assim, Dancing With The Devil logo em seguida aconselha que esse método pode não funcionar para todos, e fornece diferentes perspectivas de pessoas próximas à cantora sobre a decisão.
Demi Lovato: Dancing With The Devil veio na hora certa para o mundo. Humanizou as ações de Lovato, a tirou do pedestal e da inalcançável perfeição e reforçou que ninguém deveria ter que viver uma vida cumprindo as expectativas dos outros. Agora, Demi Lovato reivindica sua própria narrativa.
Demi Lovato: Dancing With The Devil tem os dois primeiros episódios já lançados em seu canal no Youtube.
Crítica
Título: Demi Lovato: Dancing With The Devil
Direção: Michael D. Ratner
Nota: 5/5
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