Em Lovecraft Country, Atticus “Tic” Freeman é um veterano da Guerra da Coréia que foi para a guerra para escapar do abuso físico que recebeu nas mãos de seu pai. Mas antes disso, ele escapou para os mundos imaginários de Edgar Rice Burroughs, HP Lovecraft e inúmeros outros. Ler histórias não era apenas algo que ele fazia para passar o tempo; ler histórias era sobrevivência.
Livros comerciais, filmes e televisão, o que chamamos de cultura pop, são portas de entrada para o mundo fora dos pequenos espaços que cada um de nós ocupa. Nós nos conectamos em todo o mundo por meio de experiências compartilhadas na mídia que consumimos. As histórias que melhor atendem a essa função transcendem o gênero.
Formamos comunidades em torno das histórias que amamos. Construímos nossas identidades em torno dos personagens que mais nos tocam. Contar histórias nos dá acesso a diferentes lugares, experiências e pontos de vista. As histórias também nos fornecem uma maneira de compreender melhor o mundo em que vivemos. Por meio de metáforas e alegorias, obtemos uma compreensão mais profunda uns dos outros e de nós mesmos.
Nossa relação com as histórias muda quando nos vemos refletidos nelas. Em grande parte, os livros que Tic lê apresentam heróis brancos que se movem pelo mundo sem serem impedidos por qualquer tipo de preconceito. Um soldado confederado pode ir a Marte e tornar-se, de maneira não irônica, um libertador. Tic, um homem negro, não consegue se encontrar facilmente nesse personagem. A única maneira de alguém como Tic se ver na aventura, como o herói, é tornar essa, realidade. Tic vai para a guerra para fugir do pai, sim, mas também vai para a guerra para se colocar na história. Lovecraft Country nos dá a oportunidade de os negros se verem, de serem reflexos de quem são.
A série não apenas captura autenticamente a verdade de ser negro em um país que se baseia no anti-negritude, mas também dá um espaço para explorar próprio poder dentro dessa dinâmica. Lovecraft Country dá um mundo onde os negros podem acessar um poder maior do que a branquidade, a riqueza e todas as coisas que conferem privilégios inerentes e imerecidos. É um reflexo preciso do mundo em que vivemos e uma visão fantasiosa do mundo em que poderíamos viver, se o inexplicável fosse verificável.
Mais do que apenas entretenimento, o que é absolutamente verdade, Lovecraft Country é uma catarse. O que a série faz de maneira tão bela é justapor o fantástico contra o prático e usar o absurdo da fantasia para destacar o absurdo da vida real. Isso nos leva a uma jornada que é profundamente pessoal e extremamente incompreensível. Nós nos conectamos com os personagens porque eles são reflexos do que vivemos, mas somos removidos de suas experiências porque essas experiências são estranhas.
Lovecraft Country também dá ao público uma saída para trabalhar com sua própria besteira, dando forma a coisas que de outra forma se manifestam como pensamentos ou comportamentos que são difíceis, se não impossíveis, de combater. O racismo é uma força sem rosto ou voz singular, está vivo mas não pode ser morto. Você pode lutar contra os racistas, mas o racismo é uma estrutura funcional de poder. Mas a magia existe ao lado dela, e é um poder concreto, inerente, mas não exclusivo. A magia é potencialmente um equalizador.
Os negros assistindo Lovecraft Country são capazes de superar o trauma porque os personagens conseguem. Nós os vemos não apenas sobreviver, mas também tirar algo de seu inimigo/opressor. Quando Tic transforma Samuel e os outros Filhos de Adão em pó, esse é um momento de pura alegria não adulterada. Quando Ardham Lodge desaba sobre si mesmo, há uma sensação de imensa satisfação. Esse é o poder de contar histórias. Isso nos permite sentir as coisas sem levar a dor para nós mesmos.
Não vamos todos tirar as mesmas coisas dessa série. Não podemos. Isso sempre é verdade, mesmo que o mundo amplamente conhecido da crítica cultural queira que acreditemos no contrário. Entramos em uma história com identidades, uma lente específica que afeta nossa percepção de tudo o que consumimos. Mas Lovecraft Country não abre espaço para que todos sejam heróis, esse não é o ponto. Espectadores brancos que sempre se refletiram em todos os seus tons, com todas as suas facetas, não deveriam se encontrar entre os heróis, porque essa não é a história deles. Eles têm John Carter, Jonathan Harker, Indiana Jones … E os negros tem Atticus Freeman e Letitia Lewis.