Quem nunca olhou para a própria vida dizendo “nossa, eu sou tão tadinho” sem nem ser depois de assistir algum episódio de This Is Us, que atire o primeiro lenço!
Se você já assistiu a série, sabe que provavelmente ela te pegou de surpresa – mesmo se você for daquela pessoa menos dada às lágrimas. A real é: ninguém escapa ileso de TIU. Nem os espectadores, nem os próprios personagens, que são praticamente tratados de laboratório emocional em tempo real.
Mas, se você ainda nunca ouviu falar, vale explicar: a série de televisão, categorizada como drama estadunidense, foi roteirizada por Dan Fogelman, foi do ar de setembro de 2016 até maio de 2022 pela NBC, totalizando seis temporadas, e é conhecida por abordar com sensibilidade e profundidade questões familiares, relações interpessoais e os impactos do passado no presente.
This Is Us, que conta com um elenco afiadíssimo – Mandy Moore, Milo Ventimiglia, Chrissy Metz e Justin Hartley –, venceu diversos prêmios, incluindo o Emmy de “Melhor Ator em Série Dramática” para Sterling K. Brown (ator que dá vida a Randall), e recebeu múltiplas indicações ao Globo de Ouro e a outros importantes prêmios da TV. O sucesso se deve ao “choro coletivo” provocado por seus roteiros, que transformaram experiências banais e traumas silenciosos em protagonistas da narrativa.
[Este artigo contém spoilers, então, se você ainda não começou, agora é um ótimo momento para maratonar!]
Senta, pega o lencinho e me acompanha
(Imagem: NBC / Divulgação)
Mais do que uma série – This Is Us se tornou, para muitos que se emocionaram com a família Pearson, aquele espelho cruelmente generoso.
Não é exagero.
Em tempos frenéticos, cheios de conteúdo vazio e roteiros que só descartam pessoas, Dan Fogelman criou um universo onde até respirar dói. É quase como se, a cada episódio, alguém estivesse te dizendo: “calma, sentir desesperança também faz parte”; ou então: “tá tudo bem não estar tudo bem, tá?”.
TIU virou sinônimo de “série pra chorar” pois mexe nas feridas universalmente humanas, nas falhas, perdas, pequenas violências cotidianas e traumas de todos os tipos com autenticidade, fugindo dos clichês melodramáticos tradicionais e apresentando personagens esféricos. Luto, abandono, adoção, identidade racial, dependência, distúrbios alimentares, pressões familiares e traumas silenciosos do cotidiano, são alguns dos temas tratados nos diversos arcos da série.
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É empatia pura. Quase incômoda, porque acaba sendo obrigatória. A série potencializa ao máximo o poder do “poderia ser eu” a cada flashback, a cada salto temporal, a cada novo segredo que aparece, a cada briga de família que lembra… bem, todas as famílias.
Conheça The Big Three e seus pais
(Imagem: NBC / Reprodução)
A família Pearson é formada inicialmente por Jack (Milo Ventimiglia) e Rebecca (Mandy Moore), um casal que espera trigêmeos. No dia do parto, um dos bebês não sobrevive, e o casal decide adotar um recém-nascido negro abandonado no hospital, nascido no mesmo dia. Assim nascem “Os Três Grandes” (The Big Three) – Kevin, Kate e Randall.
A estrutura narrativa é o grande diferencial da série: constantemente alterna entre diferentes períodos, mostrando os personagens em várias fases da vida. Vemos os pais jovens, os filhos crianças, adolescentes e adultos, todos conectados por decisões e eventos que ecoam através do tempo. Essa abordagem não-linear permite que o público descubra gradualmente como o passado moldou quem os personagens se tornaram no presente.
(Imagem: NBC / Reprodução)
Jack Pearson é o patriarca carismático e dedicado da família, que morre tragicamente quando os filhos são adolescentes. Sua causa mortis só é revelada depois de muuuitas temporadas a fio, quando o espectador já criou várias teorias e zerou todas as possibilidades possíveis na sua cabeça. Não vou falar como foi, mas fica o spoiler: é, realmente, mais triste e inesperado do que você imagina.
Assim, Jack é, apesar de não existir no tempo “presente” da cronologia da série, o fantasma que molda toda a história. Ele é o símbolo de paternidade idealizada. Mas nenhum personagem foge do peso emocional: o trauma não é só ferida aberta – é tentativa, muitas vezes frustrada, de fazer o melhor e falhar. Jack entrega o luto do passado, o medo de se tornar o pai ausente que teve, e o alcoolismo como resposta à dor – mesmo (ou especialmente) tentando proteger todo mundo.
(Imagem: NBC / Divulgação)
Rebecca Pearson é a matriarca que, após a morte de Jack, precisa criar os três filhos sozinha, e posteriormente (tempo futuro da série) enfrenta o avanço do Alzheimer em idade avançada. Rebecca transborda culpa. Carrega a dor de ser mãe, conselheira, companheira e, às vezes, vilã da própria família. Suas escolhas reverberam em todos os filhos, e ela precisa aprender a lidar com o fato de que não há roteiros prontos para acertar.
(Imagem: NBC / Divulgação)
Randall (Sterling K. Brown) é aula de trauma moderno: o menino negro adotado pela família branca, intelectualizado, bem-sucedido, mas nunca totalmente pertencente. É o filho nota dez que sempre carrega medo do abandono, crise de ansiedade, laços frágeis com origens que nunca pôde compreender de verdade.
(Imagem: NBC / Reprodução)
Kevin (Justin Hartley), o galã de aparência perfeita, carrega o vazio clássico de quem vive à sombra do outro. O abandono paterno, a busca por aceitação, o vício mascarado em conquistas rasas. O trauma dele é a pergunta cotidiana “será que eu sou suficiente?”, e nunca, de fato, ser.
(Imagem: NBC / Reprodução)
Kate (Chrissy Metz) tem sua vida calcada em traumas invisíveis para todos, menos para ela. A pressão pela aprovação, os distúrbios alimentares, a culpa imensa por carregar memórias que doem mais do que qualquer deslize. Sem falar da trajetória sobre maternidade, gordofobia, insegurança e, principalmente, o medo (e desejo) de ser notada.
Os não-Pearsons, mas que também são Pearsons
Além do núcleo principal dos Pearson, This Is Us brilha ao desenvolver personagens “agregados” que se tornam fundamentais para a narrativa e trazem novas camadas aos traumas e afetos da série. Quatro deles merecem destaque especial:
Beth Pearson (Susan Kelechi Watson) é a esposa de Randall e, sem dúvida, um dos personagens mais bem construídos da série. Mulher negra forte, inteligente e com personalidade marcante, Beth equilibra a ansiedade e perfeccionismo de Randall com pragmatismo e humor afiado. Seu arco explora desde a perda do pai na adolescência até a frustração de abandonar o sonho da dança, culminando na abertura de sua própria escola de ballet. Beth representa a parceira que não apenas complementa, mas desafia e fortalece seu cônjuge, formando com Randall um dos casais mais sólidos e admirados da TV recente. Sua relação com a mãe Carol (interpretada por Phylicia Rashad) também revela ciclos de exigência e aprovação que se repetem com suas próprias filhas, especialmente Tess.
Toby Damon (Chris Sullivan) entra na vida de Kate como um raio de otimismo e humor em meio à sua luta constante com a autoestima. Inicialmente apresentado como alívio cômico, Toby ganha profundidade ao enfrentar depressão, problemas cardíacos e os desafios da paternidade. Seu relacionamento com Kate passa por altos e baixos intensos – desde a alegria do casamento e nascimento do filho Jack (que nasce prematuro e com deficiência visual) até o doloroso processo de divórcio nas temporadas finais. Toby representa como os agregados também trazem suas próprias bagagens emocionais para a dinâmica familiar, e como o amor, por mais genuíno que seja, nem sempre é suficiente para superar diferenças fundamentais.
Sophie Inman (Alexandra Breckenridge) é o amor de infância de Kevin e representa o “e se…” que persegue sua vida. Desde crianças na escola, passando pelo casamento precoce que termina com a infidelidade de Kevin, até os reencontros na vida adulta, Sophie simboliza a busca por redenção e segunda chance. Seu arco mostra como alguns laços resistem ao tempo e aos erros, mesmo quando parecem definitivamente rompidos. Após relacionamentos fracassados de Kevin com outras mulheres (incluindo Madison, mãe de seus gêmeos), a série fecha o ciclo romântico dele justamente com Sophie, sugerindo que certos amores precisam de tempo e amadurecimento para funcionarem.
Miguel Rivas (Jon Huertas), inicialmente apresentado como o melhor amigo de Jack, evolui para uma das figuras mais complexas da série ao se casar com Rebecca anos após a morte do patriarca. Seu relacionamento com ela representa um amor nascido da amizade e do cuidado mútuo, sempre sob a sombra da memória de Jack e a desconfiança inicial dos filhos de ambos. Com paciência infinita, Miguel aceita ser eternamente “o segundo”, nunca competindo com a memória coletiva tão forte do primeiro marido, mas construindo seu próprio espaço no coração de Rebecca. Nas temporadas finais, ele se torna seu guardião incansável durante o Alzheimer, sacrificando sua própria saúde até seus últimos dias, quando a série finalmente dedica um episódio inteiro para contar sua história completa, desde a infância em Porto Rico até sua morte, abordando temas como imigração, identidade cultural e a beleza dos amores que acontecem na maturidade.
Esses quatro personagens não são meros coadjuvantes – são pilares que sustentam e expandem o universo emocional dos Pearson, frequentemente servindo como espelhos que refletem traumas não resolvidos ou como catalisadores de crescimento.
Além disso, a magia de This Is Us também reside nos personagens que, mesmo em passagens breves, deixam marcas permanentes na trama e em nossos corações.
William Hill (Ron Cephas Jones), o pai biológico de Randall que surge apenas na primeira temporada antes de sucumbir ao câncer, é talvez o exemplo mais poderoso dessa dinâmica. Em poucos episódios, William transforma completamente a vida do filho que nunca pôde criar, oferecendo-lhe não apenas respostas sobre suas origens, mas também uma filosofia de vida marcada pela poesia, música e aceitação da impermanência.
Outros personagens como Dr. K (Gerald McRaney), o obstetra que ajuda Jack a transformar a tragédia em esperança no nascimento dos trigêmeos; Nicky Pearson (Griffin Dunne), o irmão de Jack dado como morto no Vietnã e redescoberto décadas depois; e Deja (Lyric Ross), a adolescente adotada por Randall e Beth, carregam histórias que, embora não ocupem o centro da narrativa durante toda a série, são fundamentais para entendermos como traumas podem ser tanto herdados quanto curados através de gerações.
Esses personagens “de passagem” ou não, nos lembram que, na vida real, algumas das pessoas mais transformadoras em nossas jornadas são aquelas que, às vezes, estão conosco por apenas uma estação – mas cuja influência permanece para sempre. Através deles, This Is Us reforça que família vai muito além dos laços de sangue, sendo construída também por escolhas, compromissos e pelo amor que resiste às imperfeições de todos.
Mas, nem tudo são flores em This Is Us… (Ou melhor, arco-íris)
(Imagem: NBC / Divulgação)
Apesar de todas as suas qualidades, This Is Us apresenta uma falha significativa que não pode ser ignorada: a falta de personagens LGBTQIAP+ na trama. O único arco revolve em Tess Pearson (interpretada por Eris Baker), filha de Beth e Randall, mas mesmo ele patina na falta de aprofundamento.
Tess vive seu rito de passagem ao se reconhecer lésbica na pré-adolescência, o que já é um ponto positivo por trazer uma jovem negra e queer para o centro das atenções de uma grande série dramática. Contudo, esse potencial é rapidamente desperdiçado em função de escolhas narrativas que abafam o arco próprio da personagem.
Em vez de colocar Tess no centro de uma discussão mais profunda sobre autoconhecimento, aceitação e os desafios de ser uma jovem queer, o roteiro transfere o peso do drama para Beth, sua mãe. Assim, os conflitos de Tess deixam de ser realmente seus e tornam-se uma extensão do “mommy issue” de Beth – problemática que, por sua vez, ecoa a criação da própria Beth, também cheia de cobranças maternas e busca por aprovação. A situação de Tess vira pano de fundo para mais um ciclo geracional de insegurança, e não um mergulho no que significa ser uma adolescente lésbica.
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Inclusive, os momentos em que Tess traz à tona suas ansiedades e medos de não ser aceita mal têm tempo de se desenvolver na tela. Logo após surgirem, são rapidamente engolidos por tramas familiares mais amplas ou se perdem em debates sobre “rebeldia” adolescente, como se a orientação sexual dela fosse apenas mais um traço típico do coming-of-age, e não um ponto de vulnerabilidade, orgulho e crescimento individual.
Outro exemplo de oportunidade perdida é o relacionamento entre Tess e Alex, uma pessoa não-binária apresentada como seu interesse romântico. Essa relação surge e desaparece quase sem impacto, sem qualquer aprofundamento sobre as nuances de viver um relacionamento LGBTQIAP+ na adolescência, sobre construção de identidade ou enfrentamento do preconceito. Para efeitos de comparação, o arco de Deja (Lyric Ross), irmã adotiva de Tess, com o namorado Malik (Asante Blackk), ganha muito mais desenvolvimento, tempo de tela e emoção — mostrando um nítido desequilíbrio narrativo.
Essa superficialidade empobrece a experiência e reforça a sensação de que This Is Us priorizou, acima de tudo, histórias heteronormativas e traumas já considerados “clássicos” na TV, relegando a vivência queer aos bastidores, quase como um “checkbox” de diversidade e não como genuína vontade de discutir novas camadas da experiência humana. Como apontam outras análises, fica evidente o quanto o tema gay é subaproveitado, mesmo numa série conhecida por jogar luz sobre todas as formas de traumas familiares.
O resultado, portanto, é uma falta sentida: havia espaço de sobra para transformar a trajetória de Tess – e de outros possíveis personagens LGBTQIAP+ – em algo tão intenso, rico e emocionalmente relevante quanto os arcos centrais da série. O pouco que se aborda fica eclipsado por questões mais amplas, e a ausência de outras narrativas queer reforça ainda mais esse déficit representativo.
Enfim… por que dói (tanto) assistir This Is Us?
(Imagem: NBC / Divulgação)
Cada personagem central de This Is Us representa um trauma específico: Jack carrega o peso esmagador da responsabilidade; Rebecca enfrenta as culpas infinitas da maternidade; Randall luta constantemente com questões de pertencimento; Kevin persegue incansavelmente a aprovação que nunca parece suficiente; e Kate navega pelas águas turbulentas da insegurança com o corpo e os desafios da maternidade. Porém, o verdadeiro gênio da série está em como esses traumas individuais se entrelaçam para formar uma tapeçaria familiar complexa e reconhecível.
Um dos maiores méritos é conseguir tirar lágrimas até de quem jura que não se abala. E não é à toa: cada episódio é cheio de cotidiano, de situações banais (quem nunca discutiu por causa de uma receita de família, por exemplo?) e diálogos tão familiares que é impossível não se reconhecer ali. Nesse sentido, This Is Us transcende o rótulo de “dramalhão” para se tornar um espelho sincero da experiência humana.
O uso alternado de passado, presente e futuro serve principalmente para ilustrar que cicatrizes não desaparecem – elas só mudam de formato. O trauma não tem idade certa, não avisa, não pede licença: às vezes é um olhar atravessado, outras vezes um aniversário esquecido, às vezes só um “desculpa” que ficou engasgado por anos. E é justamente nessa honestidade brutal sobre como carregamos nossas feridas que a série encontra sua universalidade.
Mesmo tendo encerrado sua jornada em maio de 2022, This Is Us permanece tão relevante quanto no dia de sua estreia. Disponível no Brasil através do Star+ (Disney+), a série continua sendo uma experiência essencial para quem busca narrativas que não apenas entretêm, mas também curam.
(Imagem: NBC / Divulgação)
Nunca é tarde para conhecer os Pearson e, através deles, talvez entender melhor suas próprias histórias familiares, seus próprios traumas – mesmo aqueles que você jurava não ter.
Afinal, como This Is Us nos ensinou ao longo de seis temporadas: somos todos feitos de memórias imperfeitas, decisões questionáveis e pequenos momentos de redenção.
E this is exatamente que nos torna humanos.