Uma regra básica da vida que poucos seguem é entender que não se pode julgar as atitudes provocadas pelos problemas do outro, já que o sentimento é algo particular e cada um é afetado de um jeito diferente por seus acontecimentos. Ainda sim, o ser humano aparenta ser projetado para opinar – e muitas vezes desprezar – as reações que o colega de espécie possui diante de certas ocorrências, independente de querer ou não. E é por isso que quando li a sinopse do livro de “Cherry”, revirei os olhos com vontade pensando que seria apenas mais um romance construído em cima de uma dependência emocional.
Embora, em partes, estivesse certa, devo admitir que mordi a língua com ao decorrer das 352 páginas que compõem o exemplar. Através de uma linguagem coloquial, Nico Walker consegue transmitir ao leitor todas as misturas de sensações que integraram sua vida antes da prisão, e é por isso que o trabalho dos irmãos Russo – sim, esses mesmos que dirigiram alguns dos filmes do Universo Marvel – e das roteiristas Jessica Goldberg e Angela Russo-Otstot foram realizados sobre pressão.
Ainda que tenha tido uma divulgação exagerada – visto que o próprio protagonista do longa já havia gerado publicidade o suficiente -, carregada de teasers, fotos e exposição de cenas importantes, “Cherry”, que chegou aos cinemas estrangeiros no dia 26 de fevereiro e na plataforma de streaming da Apple ontem, 12, não atendeu as expectativas. Superou-as. E é claro que para conseguir tal proeza, é necessário ter uma eficiência mínima de 90% em todos os fatores que constroem a trama, desde o roteiro até os efeitos visuais.
A história, ainda que não intitule o personagem principal (interpretado por Tom Holland) – o que resultou em críticos o chamando de Cherry – e afirme que o enredo não se assemelha 100% ao o que lhe ocorreu, retrata parte da vida de Nico Walker: o jovem que ficou conhecido nos Estados Unidos por roubar 11 bancos em um curto período de tempo para sustentar o seu vício em drogas. Logo, o enredo acompanha a trajetória de Walker e os motivos que lhe provocaram o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (ou TEPT) e sua dependência em heroína.
Antes de adaptar um livro para as telas de cinema, os roteiristas tem um trabalho longo e árduo para manter a essência que a obra transmite para o leitor. Não foi diferente com a saga Harry Potter; não foi diferente com a saga Crepúsculo; e, com certeza, não seria diferente com “Cherry”.
O livro, que foi altamente aclamado pelo público após o seu lançamento em 2018, foi dividido em partes com pequenos capítulos que narram desde o início a causa para o personagem ter chegado onde chegou. E com a mesma ideia da obra, o longa se divide em capítulos épicos – e carregados de um peso psicológico enorme -, nomeados em “Básico”, “Cherry”, “Casa” e “Vida de Droga”, que norteiam o espectador dentro da onda de decisões erradas do protagonista.
O filme também não se difere do livro ao atrair o público da mesma maneira que Walker o atrai para sua experiência: através de uma narração em primeira pessoa, com tempo verbal no presente, vívida, mas, ainda sim sombria, neutra dos acontecimentos ao seu redor. O autor descreve com uma excelência cada sensação que sentira ao decorrer do vício e dos ataques de pânico causados pelo TEPT.
“O gosto vem primeiro; depois a onda começa. E está tudo certo, o calor correndo por minhas veias. Até que o gosto pareça mais forte do que o normal, tão forte que dá nojo.”
Por outro lado, ao passo que a trama critique – mesmo que sem intenção – a acirrada guerra contra o Iraque, o vergonhoso tratamento que os soldados recebem ao retornar para a casa e a falta de ética de alguns médicos que recomendam Oxicodona sem a mínima falta de tato, o enredo se apoia em um amor adolescente que não possui a parte do “felizes para sempre” presente nas comédias românticas.
Assim como a obra literária, o filme contorna a vida de Emily (Ciara Bravo) – o par romântico do protagonista – com uma estranheza em seu personagem. Em um primeiro momento, a jovem não acredita no amor igual o seu par, justificando a inexistência com uma frase tirada de um clichê adolescente da geração X.
“Às vezes eu sinto que o amor não existe de verdade. São apenas feromônios pregando peças nas pessoas.”
E como toda história de amor que se preze, o término sempre é a parte mais difícil. Sempre há uma dificuldade em aceitar que aquela pessoa não estará mais presente na sua vida, nas suas conquistas e nas suas derrotas. A dor chega a ser tão forte que o seu peito se contrai e você só quer se sentir feliz de novo; quer se sentir útil mais uma vez, não importa como isso irá acontecer.
Foi neste momento, então, que o protagonista decide se alistar no exército. Ainda que Walker tenha servido as forças armadas em uma época pós a queda das Torres Gêmeas, o autor não sabia o que lhe esperava do outro lado do continente, começando com um treinamento “básico” carregado de xingamentos homofóbicos, racistas e xenofóbicos.
Todos sabem que não é fácil trabalhar no exército. Porém, poucos assumem que mais do que a saúde física, a saúde psicológica é extremamente afetada. Não há cabeça que aguente. Não apenas pelo preconceito escancarado e pela falta de respeito com o próximo, mas, também, pelos grunhidos dos soldados atacados durante a guerra, os quais eram atendidos com talento pelas mãos do personagem principal.
Contudo, o ponto aqui não é somente os traumas que ser um combatente do exército pode te proporcionar, como também os traumas contínuos que marcam a vida do protagonista. Holland interpreta com maestria um personagem que sofre periodicamente com as incertezas e indelicadezas da vida adulta, mesmo que ainda seja jovem.
O maxilar trinca, os olhos viram moradia de noites mal dormidas e o suor parece fazer parte do corpo junto da tremedeira. O remédio prescrito há muito tempo não funciona mais e o estresse incessante faz com que a mente peça intensamente por um arrego. Até o conforto chegar. E, mesmo que não devesse, através do “Dr. Quem”, que só deseja encerrar o assunto, mas acaba por provocar o vício em heroína.
A todo momento o espectador entende os sentimentos que rondam o principal, compreendendo a sua dor e, consequentemente, o motivo para aquilo ser o seu escape. Os Russos abordam uma ótica pesada para expressar o desconforto do personagem de Walker no livro, com luzes se apagando e holofotes centralizando a dor e o trauma, enquanto Newton Thomas Sigel trabalha arduamente com planos abertos e ângulos altos.
Henry Jackman também não fica de fora. O produtor musical utiliza canções clássicas e artistas como Van Morrison, Yungblud e Puccini. A trilha sonora se torna parte do enredo e aplica as sentimentos do personagem durante a sua trajetória, ainda que “Brand New Day” faça o espectador ter esperança pela vida ilusória que Holland poderia ter.
“Uma coisa sobre roubar bancos é que você está praticamente roubando mulheres, então nunca quer ser rude.”
“Cherry” em nenhum momento decepciona quando se trata de destacar as emoções que Walker reproduz no livro. Com um pegada sarcástica e que demonstra não só a falta de importância com os nomes dos comércios a sua volta, mas, também, a sensação de estar vivendo um pesadelo sem fim, os letreiros bancários e as placas de identificação de figuras autoritárias são nomeados como “Shitty Bank”, “Sgt. Whomever” ou “Bank Fuck Americans”.
A quarta parede entre o personagem e o público também é quebrada e usada como símbolo para os sentimentos do principal. Isso porque, com o desenrolar da trama, ele não se permite continuar olhando nos “olhos” do espectador tamanha vergonha que sente por seus atos, como se não bastasse já ter recebido uma medalha por “não morrer” durante a guerra, ou se ver em um buraco sem luz a ponto de se perfurar repetidamente para tentar sentir algum resquício de vida dentro de si.
Por vezes, a voz cansada de Holland carrega o peso de tudo que o personagem viveu e, assim como a voz de Emily o mantém são durante o seu tempo no exército, fica claro que, muitas vezes, o amor não é suficiente para te salvar dos seus traumas. Neste caso, foi preciso passar o limite do próprio caráter para entender o quão errado estava.
A história de Walker, sendo ficcional ou não, é baseada em um ambiente muito real e pouco comentado dos soldados americanos. Embora a crise econômica da época tenha tido um peso maior para os acontecimentos do personagem, já que este já se encontrava em uma posição de desempregado sem perspectiva da vida, os fantasmas enterrados em seu subconsciente acordaram com as péssimas situações enfrentadas na terra inimiga.
O abuso de substâncias, então, entra como forma de acalmar os pensamentos berrantes de Walker, assim como o assalto a banco surge como meio de fortalecer o vício e, consequentemente, de dar o “troco” nos donos dos estabelecimentos que negavam crédito ao passo que cobravam taxas absurdas e inexistentes.
“Cherry” possui um visual de sequência para sequência que remete as obras de Coppola e Tarantino, como a sequência sem falas no final do filme, com a música de Jackman aumentando a cada passo dos personagens em um claro sinal de renascimento.
Walker, que foi libertado da prisão em 2019 a tempo de ver seu romance adaptado ao cinema, talvez não esperasse que o resultado fosse tão satisfatório, ou que isso fosse possível enquanto escrevia a trama na máquina de escrever que existia ali na prisão. Graças ao grandioso trabalho dos Russos, de Bravo e, principalmente, de Holland, hoje o autor pode desfrutar dos bons resultados que seu conto trouxe.
E se você está se perguntando, caro leitor, se “Cherry” é um bom concorrente para o Oscar, tenho o prazer de informar que sim. Mais do que uma boa construção de enredo, uma boa trilha sonora e uma boa direção, “Cherry” é o marco do crescimento de Tom Holland em frente as telas do cinema.
De “Amigão da Vizinhança” a viciado apaixonado, Holland reafirmou o que já sabíamos: seu talento em se adaptar a diversos personagens. E, assim como o ator que soube desenvolver todos os traumas e características que o personagem de Nico possui no livro, Ciara mostrou sua versatilidade e chocou o espectador em uma das cenas mais profundas de Emily.
Sendo assim, admito que, ainda que muitos críticos não tenham visto – ou sentido – o poder de “Cherry”, o filme tem todos os atributos para conseguir chegar a uma premiação, mesmo que não seja contemplado com a estatueta.
Título: Cherry: Inocência Perdida
Direção: Anthony Russo e Joe Russo
Roteiro: Angela Russo-Otstot e Jessica Goldberg
Elenco: Tom Holland, Ciara Bravo, Jack Reynor, Michael Rispoli, Jeffrey Wahlberg, Forrest Goodluck e Michael Gandolfini.
Nota: 5/5