Em 2016, a Netflix anunciava a primeira série original brasileira: 3%. E dava para perceber a fé que o serviço de streaming tinha colocado na série desde o começo, com uma divulgação muito pesada, nacionalmente e internacionalmente. Agora, quatro anos depois, a série se viu em sua 4ª e última temporada, que deu um final para essa história. Assim, durante todas as suas temporadas e, com peso muito grande nessa última, 3% conseguiu equilibrar sua crítica social, desenvolvimento dos personagens e o paralelismo com o nosso mundo real – que parece estar longe de ser distópico, mas a série prova que não é bem assim.
3% conta sobre um futuro distópico onde apenas 3% da população tem o privilégio de viver com conforto em um local extremamente tecnológico (Maralto), enquanto o resto da população é obrigada a viver em uma terra sem lei (Continente). Após três temporadas acompanhando o grupo formado por Michele (Bianca Comparato), Rafael (Rodolfo Valente), Joana (Vaneza Oliveira) e Marco (Rafael Lozano), a quarta temporada trouxe o final que os fãs da série esperavam há tempos: o fim do Maralto.
Calma, não lembro como chegamos aqui
Para entender todos os paralelismos e simbologias que a série traz, é preciso lembrar do que aconteceu na temporada passada. A 3ª temporada teve como grande vilã a Comandante Marcela (Laila Garin) que, após a Concha sofrer uma tempestade de areia, oferece à Michele suprimentos em troca do controle da Concha.
Michele se vê obrigada a selecionar apenas 10% de quem vive lá até que a estrutura seja reerguida. Depois, o local seria reaberto e acolheria de novo os eliminados. Assim, durante os oito episódios, observamos esse processo que culmina em um ataque que acaba fazendo Marcela de refém na Concha, como moeda de troca com o Maralto.
E é daí que parte a 4ª temporada. Com excelentes sete episódios, a série conta como se dá essa troca de “favores” entre os representantes da Concha e o Maralto – porém com uma reviravolta. Na verdade, o grupo que já conhecemos quer destruir a ilha através de um pulso eletromagnético que desligaria toda a tecnologia do lugar, e deixaria os “merecedores” iguais aos que estão no Continente – o que julgam que seria justo.
E essa missão – que envolve uma bomba de duas partes (uma vai com o grupo e a outra vai em uma carga do Continente para o Maralto para não atrair atenção) – é contada tanto no Maralto quando no Continente. Joana, Marco, Rafael, Elisa (Thais Lago) e Natalia (Amanda Magalhães) estão do lado de lá, mascarados de uma “visita diplomática”, enquanto Michele, do lado de cá, tenta levar a segunda parte da bomba.
A sedução de um mundo melhor
Logo no primeiro episódio se é lembrado da tentação e sedução que é o Maralto – e a dura realidade de chegar até ele. Os 3% dos selecionados no processo são os “merecedores” e o resto volta para onde veio, na amarga aceitação de viver a pior versão da vida que poderiam ter. E esse contraste é destrinchado minuciosamente durante os sete episódios.
Todos os personagens que estão no Maralto são obrigados a se manter forte diante de todas as tentações que o lugar promove. E é essa a oportunidade que os roteiristas veem para desenvolver a história e o arco de cada um deles.
Arcos dos personagens: 97% de acertos, ‘3%‘ de erros
Os mesmos personagens que receberam ótimos desenvolvimentos na temporada passada, estão inacreditavelmente melhores ainda. Suas convicções, problemas e desafios são feitos sob medida que ajudam e levam ao seus desfechos no último episódio.
Muito disso é direcionado a Michele. Bianca Comparato viveu pela última vez a personagem, e deu mais vida à ela do que nunca. Michele, durante a série inteira, foi subestimada e levada como simples “aprendiz” ou “manipulável”. Sempre julgada por quem estava no poder, aos poucos ela conseguiu chegar ao topo (líder da Concha), somente para cair novamente. Mas a 4ª temporada fez jus à personagem, que lutou pelo que acredita e teve que tomar uma dura e difícil decisão de [SPOILER] atirar para matar seu irmão, André (Bruno Fagundes).
O mesmo não pode ser dito em relação à Comandante Marcela Álvares. O desafio de fazer o público simpatizar com quem era – literalmente – a vilã da temporada passada, aparentemente foi grande demais. Com cerca de dois flashbacks em um único episódio, a série esperou que o público simpatizasse com a personagem mostrando uma fração do que foi seu passado “duro”. Desconexo com o resto da temporada, essas cenas não justificaram a postura da personagem durante a série inteira, muito menos nos fez ter simpatia com ela nos momentos finais – que era muito importante para seu arco.
3% é [quase] a nossa realidade
É muito difícil não falar de política e traçar um paralelo com nossa realidade ao assistir a série. Parece um mundo distópico demais para nós, mas basta olhar com atenção para perceber os paralelos do Brasil – e mundo – com aquela sociedade.
A obsessão cega por um ideal foi o que polarizou aquela população em 3%. Seguir o casal fundador a todo custo, mesmo que distorcendo e interpretando do próprio jeito seus ideias, foi o declínio de André. Assim como a fixação de Glória (Cynthia Senek) para entrar no Maralto, que acarretou na destruição da Concha. Além disso, a persistência de Joana para destruir o Maralto, a curto prazo, foi extremamente caótico e negativo na qualidade de vida de todo mundo. São inúmeros desastres que são consequências diretas de um mundo polarizado, onde se lutam pelos ideias as cegas, não importa o que custar.
Assim, a série se mostra um paralelo direto com a situação do Brasil atualmente, com uma população dividida entre direita e esquerda e entre partidos. Isso afeta diretamente nas relações intrapessoais, algo que 3% constrói muito bem em sua narrativa. A série serve como uma espécie de “alerta” para o mundo de que esse sistema pode levar a um colapso.
A música como contadora de histórias
Sons sempre foram muito característicos na série. Seja para construir tensão ou ilustrar um momento, as músicas continuadamente conversavam com as cenas. Assim, na última temporada não foi diferente. Uma das cenas finais, da grande guerra entre todos os subgrupos restantes – afinal o Maralto foi destruído, e todo mundo se refugiou no Continente – teve uma composição de quadros entrelaçados com a música dignas de um finale de uma série.
“Velha Roupa Colorida“, de Belchior, é a música tema dessa cena, que não poderia se encaixar mais. Não existe mais Maralto, ele ficou para trás. O que existe é aquela realidade, sem ilusões e almejos distantes. A questão que está ali é a sobrevivência diante de uma sociedade rachada e completamente polarizada. Então era como dizia a música: “o passado é uma roupa que não nos serve mais“.
Não era o que foi planejado, mas com certeza não existe voltar para o que era antes. Em uma sociedade meritocrata, com desigualdade e estrutura de poder definidas, os personagens estão cansados disso e querem uma outra alternativa. Assim, a série termina com a esperança para um futuro melhor, porque o passado nunca mais.
Como pioneira nas séries originais no Brasil, 3% ficará para sempre na história do audiovisual brasileiro, o que é uma grande conquista para a série, e um privilégio muito grande para nosso país.