Indo para o 5º mês de isolamento social, fica cada vez mais difícil achar conteúdos que são atraentes nas plataformas de streaming. Parece que as coisas boas já foram vistas ou simplesmente nenhuma é interessante o suficiente. E, em um primeiro momento, Boca a Boca tem uma premissa rasa. A série se passa no interior do país e, quando uma doença desconhecida começa a se espalhar pelo beijo, a população começa a ficar com medo. Porém, a série se mostra muito mais profunda que um simples “vírus adolescente”. Ela cria sub enredos e desenvolve seus personagens secundários, além de entregar uma cinematografia inacreditável.
Não existe “encher linguiça” em Boca a Boca
A série, que é curta para o padrão Netflix – somente 6 episódios de 40 minutos cada -, começa seu primeiro episódio nos apresentando a origem do vírus: uma festa fora da pequena cidade de Progresso. A rave, onde os jovens tomaram um líquido não identificado, foi o ponto de partida para o resto da temporada. Durante as músicas – que são escolhidas a dedo e completamente imersivas no ambiente – os jovens se beijam: uns aos outros, beijo triplo e todas as formas e variações possíveis parecem ter acontecido.
Já no dia seguinte, Fran (Iza Moreira) encontra Bel (Luana Nastas) no chão do banheiro chorando em desespero e com uma mancha preta na boca – o vírus. Bel acaba por ficar no hospital e não demora muito para que outros casos idênticos comecem a aparecer em Progresso. Cabe a Fran, Alex (Caio Horowicz) e Chico (Michel Joelsas), então, mapear quem beijou quem naquela festa para avisar e prevenir que mais casos ocorram.
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Porém, conforme os episódios vão se passando, conhecemos mais sobre esse trio e suas histórias. O criador da série, Esmir Filho, faz o que parece que virou raridade em séries originais da Netflix: ele desenvolve todos esses personagens. A trama de Boca a Boca apresenta seus personagens e faz questão de desenvolver todos, e não os usa como mecanismo para fazer com que a trama principal evolua devagar e ocupe o total dos 6 episódios. As emoções, passado e personalidade de todos os personagem fazem a série caminhar como um todo.
E durante esses 6 episódios, começamos a compreender as batalhas internas que Fran, Alex e Chico travam. A série mostra uma juventude consciente do que há de errado em sua cidade, e esses adolescente estão prontos para resolver o problema.
Além disso, Esmir ousa brincar com as cores, luzes, ângulos e cortes durante as cenas na rave que te permitem sentir o prazer junto daqueles jovens. É uma espécie de alegoria da liberdade de uma juventude que está presa em suas próprias gaiolas. Isso porque cada um deles enfrenta problemas muito particulares e que, na vida de um jovem, tem potencial destruidor.
O desenvolvimento das personagens
Boca a Boca aproveita também para não só resolver sua premissa inicial, mas também adicionar outras. Alex, que é um Nero e parte da família rica e dona de uma fazenda produtora de carne, tem um arco muito bem construído. Ele sai de um garoto tímido para um jovem que está disposto a fazer o que for preciso para lutar pelo o que acredita. O personagem de Caio aprende a se impor para seu pai e está disposto a acabar com seu legado para que o pai assuma as responsabilidades dos erros e atrocidades que ele faz com o gado. O que, aliás, ficou que ótimo gancho para uma possível 2ª temporada.
Porém, com a precisão que o arco de Alex é escrita, parece que Chico acaba por levar a pior. Jovem gay – quase – assumido, o roteiro decide seguir para o caminho mais fácil e clichê de uma história LGBT+. Após um vídeo seu com outro homem vazar na internet, Chico é agredido na rua a noite e acaba no hospital. Sem desenvolver muito mais do que isso, a sexualidade do personagem de Michel vai pelo caminho de narrativa menos trabalhoso e se destoa muito do resto da série. No entanto, isso não impede do personagem ser bem trabalhado nas outras esferas da sua vida, especialmente no relacionamento com seu irmão.
Uma 2ª temporada?
Como muitos apreciadores da Netflix já sabem, são vários os fatores que determinam a renovação ou não de uma série. Os próprios criadores mal tem um dizer sobre o assunto, mas isso não os impede de sonhar. E foi isso que Esmir fez.
No final do último episódio, o criador conseguiu amarrar todas as pontas soltas da série. Respondeu todas as perguntas que tinham sido levantadas até então e a 1ª temporada pareceu muito bem completa, sem histórias abertas que precisavam ser contadas.
Porém, logo após o final do episódio, basta aguardar um pouco que vemos uma espécie de cena pós-créditos que abre um grande ponto de interrogação e convida a questionar sobre quem, na verdade, é o herói e quem é o vilão.
Durante a série, vemos que a cidade de Progresso é muito rigorosa sobre não atravessar a fronteira entre a cidade e a Aldeia – lugar onde tem a Seita. O problema se dá quando quem foi a organizadora da rave é a própria Aldeia. No entanto, eles acabam por mostrar ser o contrário daquilo que a cidade prega que eles são.
E seguimos a temporada inteira pensando isso – até a “cena pós-créditos”. A cena, que não contém nenhum diálogo e dura cerca de 10 segundos, é o suficiente para incitar a audiência para uma segunda temporada.
Como dito antes, cabe a Netflix decidir o caminho de Boca a Boca. Apesar disso, Esmir Filho e o elenco inteiro provaram para quem quiser assistir que existe produções brasileiras muito boas e que o cenário de entretenimento brasileiro consegue abordar pautas importantes e significativas “mascaradas” de uma simples “série de drama”.