Nos últimos anos, J.K. Rowling fez várias declarações transfóbicas, causando grande indignação nos Potterheads – nome dado aos fãs da saga Harry Potter – que, desde o final de 2019, encaram a infeliz realidade de um universo inteiro ter saído de uma mente preconceituosa. Considerando esse posicionamento da autora, uma questão fica no ar: consumir, falar e celebrar o Harry Potter e o Universo Bruxo é ser conivente com a transfobia de J.K. Rowling?
Em um recorte nacional, pessoas trans são altamente marginalizadas, o que afeta diretamente nos dados que temos sobre essa parte da população. Em 2017, 11 pessoas trans sofriam violência no Brasil por dia, de acordo com o Sinan, parte do Ministério da Saúde. Além disso, em 2019, houveram 132 assassinatos, de acordo com levantamento da Transgender Europe. Esses números altos podem ser mais chocantes ainda se considerarmos que os casos são subnotificados.
Entender tal marginalização é essencial para definir a responsabilidade de pessoas cisgênero como canal para amplificar as vozes de pessoas trans. Como muitos fãs de Harry Potter, separar sua infância e adolescência do impacto que a saga teve em suas vidas pode ser difícil, mas não é impossível.
Confira também:
A saga nunca foi idealizada por parte dos fãs, pelo contrário: os leitores sabiam que existiam problemas nos livros muito antes de Rowling começar a falar sua opinião sobre pessoas trans. Os fãs já apontaram seu racismo discutível, pink money, falta de multiculturalismo, gordofobia e certa defesa das estruturas patriarcais.
No entanto, apesar de suas várias falhas, Harry Potter ainda sim influenciou gerações de crianças a se tornarem progressistas. O sucesso da saga – e mais, sua longevidade – se deram pela conexão entre os fãs e a criação de uma comunidade, que levaram a história para além das páginas: foram eles que se classificaram para as casas de Hogwarts, fizeram cosplays, escreveram fanfics, lotaram lojas para lançamentos de livros e esgotaram as salas de cinema – não foi J. K. Rowling. O fenômeno cultural que Harry Potter é hoje foi um feito exclusivo dos fãs, e isso se torna a principal conversa quando tenta-se separar a obra de sua autora.
Foi essa união que fez com que piadas como “Harry Potter não tem autor”, “Nós que escrevemos Harry Potter” ou “Você sabia que Harry Potter simplesmente apareceu?” se tornassem verdadeiros movimentos. Assim, ao invés de cancelarem a autora e a obra, os fãs separaram, dentro do possível, uma da outra. Vídeos e textos explicando como consumir conteúdo de Harry Potter sem que isso gere dinheiro para Rowling viraram comuns dentro da comunidade, que busca a todo custo ignorar a existência da autora e tirar seu poder sob a história.
E isso, honestamente, é um direito dos fãs. Repudiando os comentários transfóbicos de Rowling, milhões de fãs de Harry Potter conseguiram transformar a saga e recuperá-la do mar de pensamentos preconceituosos.
No entanto, é impossível negar a dor que esses posicionamentos causaram em incontáveis corpos trans e não-binários que acharam um refúgio nos livros. Para esses fãs, o abandono à saga é completamente compreensível. A ferida que a autora abriu ao acabar com o espaço que pessoas trans consideravam seguro, pode demorar para fechar, se é que algum dia fechará.
O poder do amor e empatia dos fãs por pessoas trans e outras comunidades sub representadas merece fazer parte da história de Harry Potter. Porém, por mais que os fãs tentem separar a autora de sua obra e não lhe dar dinheiro, o capital social que J.K. Rowling ainda recebe pelo sucesso de sua saga é indescutível. Enquanto Rowling estiver viva e Harry Potter ainda ser um fenômeno social, a autora estará se beneficiando da obra.
No final, cabe a cada fã – cisgênero ou não – estar ciente do impacto negativo de Rowling. Além disso, deve decidir se ainda vale a pena consumir Harry Potter – pelo menos enquanto sua autora ainda está entre nós.
Aliás, quais são os seus pensamentos sobre o assunto? Deixe nos comentários. No entanto, não esqueça de nos seguir nas redes sociais para acompanhar tudo sobre cultura pop.